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Vozes Ciganas no Mercado de Trabalho (Parte I), Entrevistas, Francisco Azul

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Vozes Ciganas no Mercado de Trabalho (Parte I), Entrevistas

FRANCISCO AZUL
Entrevista realizada em outubro de 2019, Lisboa

Observatório das Comunidades Ciganas (ObCig): O que acha da integração da população cigana no mercado de trabalho que não seja o trabalho tradicional (por exemplo, a venda em feiras)?

Francisco Azul (FA): A integração da população cigana no mercado de trabalho formal vem, advém, de um fator que é a forma tradicional de ganhar a vida da comunidade cigana estar a terminar devido a diversos fatores, entre os quais a criação das grandes superfícies comerciais que vieram no fundo acabar com as feiras, porque o preço das peças que se vendem nas feiras é muito equivalente ao preço que vendem nos supermercados. E claro, as pessoas, digo eu, pelo lado do conforto de estarem num centro comercial, com mais variedade de produtos, aproveitam para em vez de irem às feiras, ao mercado informal, irem ao mercado formal. Além de que as feiras e a comunidade cigana, devido também à distância que há entre feiras, àquilo que se paga quase mensalmente pelo arrendamento, digamos assim, dos espaços nas feiras, não compensa. E, portanto, a forma que nós chamamos tradicional de ganhar a vida cigana termina por causa desses fatores. Outros fatores são também que a população cigana percebe que é necessário e que é uma mais-valia, sobretudo os jovens e esta nova geração, continuar a estudar. E o facto destes jovens continuarem a estudar... Percebem que querem ter uma profissão para o resto da vida, uma profissão, um salário fixo. E as feiras muitas das vezes ou quase sempre não temos sempre a certeza do que é que vamos vender, se vamos vender o nosso produto hoje muito, amanhã podemos vender pouco e isso faz com que a comunidade cigana perceba que é necessário uma mudança e essa mudança está a acontecer e cada vez mais vemos população cigana no mercado de trabalho formal. Se bem que, no mercado de trabalho informal, aquilo que nós chamamos as feiras, muitos destes ciganos trabalham muitas horas. Para termos um exemplo, eu tenho na minha família pessoas que ainda fazem feiras e acordam às 5 ou 6 da manhã para fazer um mercado e só regressam a casa às 7, 8, 9 horas da noite, portanto, há aqui uma jornada de muitas horas fora de casa, sem ver os filhos, a família. Portanto, quando nós pensamos sobre estas coisas temos de ter uma visão destas situações. Eu acho que isso é importante ter em consideração, quando nós metemos na ideia “o cigano vai para a feira e aquilo não é um mercado, aquilo não passam lá muitas horas, aquilo não é muito trabalhoso”. E aquilo é muito complicado, sobretudo no inverno com chuva.

 

ObCig: Quando começou a trabalhar nesta empresa ou organização e como surgiu a oportunidade?

FA: Eu comecei a trabalhar para o Alto Comissariado para as Migrações no ano de 2016, salvo erro em outubro ou novembro, já não sei o mês, 2016. E a oportunidade surgiu quando estava a estudar. Estava na licenciatura de Serviço Social e surgiu a oportunidade, surgiu o convite de integrar a equipa do antigo gabinete de apoio às comunidades ciganas e pronto foi assim que surgiu o convite. Trabalhar em part-time, enquanto trabalhava e estudava, foi também um crescimento no fundo. Uma oportunidade que assim que aconteceu agarrei com as duas mãos, porque sabia que eu ia crescer profissionalmente, que ia ter oportunidade de trabalhar numa organização já com alguns anos, uma organização que faz um trabalho muito importante não só com ciganos, mas com refugiados e imigrantes. Ia-me dar uma visibilidade, à minha vida e àquilo que eu gostava de fazer no futuro grande. E no fundo, aproveitei e fiz aquilo que um cigano muitas vezes faz que é aproveitar as oportunidades para crescer profissionalmente, mas também ajudar a sua comunidade e todas pessoas, que no fundo necessitam de ajuda. E nós temos este problema que está a ser solucionado, um problema que nós sabemos que tem de ser solucionado, que é o dos refugiados, o dos imigrantes e da comunidade cigana e, portanto, o convite foi bom, muito bom para mim e tem sido espetacular ajudar a comunidade cigana e não só, as outras comunidades a integrar-se no nosso país. E também serem uma mais-valia para o nosso Portugal.

                                                                                                                                             

ObCig: O que fazia antes?

FA: Eu antes de vir para o ACM, e voltando um pouquinho atrás, acho que é importante explicar um pouco o que foi o meu percurso escolar até chegar à Universidade e agora aqui ao ACM. Então, estava no 7º ano, entrei num curso de Técnicas de Venda, só que como na altura a escola não era bem aquilo que eu queria, ou melhor, não era aquilo que eu desejava na escola, comecei a faltar imenso às aulas, a esse curso de Técnicas de Venda. Mas aquilo para mim não fazia muito sentido e então como faltava muito, a escola resolveu retirar-me, entre aspas, do curso, e voltar para o ensino regular. O que fez com que voltasse para uma turma, tinha para aí 16 ou 17 anos, numa turma de 7º ano com miúdos de 13 anos. E então aí quando voltei ao ensino regular e percebi que tinha andado a tomar decisões super incorretas para a minha vida e ainda era um jovem com 16, 17 anos, que no fundo ainda estava a ser padrinho daqueles miúdos lá na escola, porque eles viam-me como o mais velho, como o nosso elemento mais velho, ainda por cima cigano… E aquilo, parecendo que não, muitas vezes nós para darmos um passo à frente é necessário darmos alguns passos atrás. E foi aí que eu percebi que queria ser alguém na vida e se queria uma vida melhor para mim tinha de continuar a estudar. Então tendo em consideração que aqueles jovens viam também em mim uma proteção, comecei a ir às aulas todos os dias, fiz o 7º, 8º e 9º ano no regular, e depois eu queria continuar no ensino regular, mas nessa altura surgiu um curso na minha escola que era de Técnico de apoio à gestão desportiva e como eu na altura jogava futebol e gostava muito da questão do desporto resolvi então ir pela via profissional nesse curso de Técnica de apoio à gestão desportiva. Foi interessante que durante este período tive uma ajuda espetacular da minha escola, a Escola de Santo António no Barreiro, que sempre me apoiou e sempre me deu também as bases para chegar aqui onde estou, mas tinha alguns professores e sobretudo um professor que me dizia que, ele era professor de português, enquanto cigano podia ter o melhor de dois mundos, algo que nenhum outro jovem que não era cigano podia ter, ele dizia-me que num dia eu posso estar, posso ir ajudar os meus pais na feira, posso ir a um casamento, mas depois também tenho esta parte da intelectualidade, da formalidade das coisas, algo que ele me dizia que me ia dar muito jeito no mercado do trabalho. E a verdade é que me tem dado jeito, esta questão do fazer o negócio quando ia para as feiras, da questão humana de falarmos com as pessoas, porque nós nas feiras temos que vender o nosso produto e isto vai-nos ajudando. E portanto, quando o professor me diz isto fez um click em mim, e de fato esta memória do professor de português, professor Roberto Pinto, colocou na minha mente, e a escola também, mudou de facto tudo aquilo que eu pensava. E então fiz o 10º, 11º, 12º em Desporto, e depois de terminar o 10º, 11º, 12º ano eu pensei assim, bem, já que fiz isto porque é que não vou continuar para a faculdade. E então eu pensei, vou para desporto, vou continuar a área do Desporto. Depois fui ver a minha média e infelizmente para entrar aqui em Lisboa a minha média não chegava, tinha que ir para Rio Maior, e aqui pensei muito na minha vida e comecei a pensar naquilo que são os pilares para a comunidade cigana porque ao fim ao cabo a família para a comunidade cigana é o elemento mais fulcral e mais central e eu pensei não posso ir para Rio Maior porque vou ter de ir viver lá, vou ter que arranjar outra forma de me sentir feliz, de me sentir bem comigo próprio e então surgiu a questão do Serviço Social. Porque durante este período, desde o 7º ano em que eu abri a minha mente até chegar ao 12º, lá na escola, como eu disse, apoiavam-me imenso e fazia imensas sessões lá na escola e era padrinho dos miúdos que chegavam novos e fazia muitas vezes a ponte entre o bairro e a escola. Isso também... Foi crescendo em mim o bichinho do empoderar as pessoas, empoderar sobretudo as comunidades ciganas. E então pensei... Porque não Serviço Social? Entrei em Serviço Social, terminei e pronto. E durante este período foi isto a minha vida. Ah! Há uma coisa muito importante. Tive três anos da minha vida em que acordava às 8 horas, ia para o trabalho das 9 horas até às 17horas, das 17 horas às 21 horas ia para a faculdade, e depois das 21 horas ia treinar, porque até ao ano passado jogava futebol, futebol 11 numa equipa amadora, digamos assim, mas que no fundo também me ajudava imenso nestas questões. 

 

ObCig: Relação com os/as colegas?

FA: A relação com os meus colegas como devem imaginar é super boa. Sobretudo no meu gabinete que são mais raparigas do que rapazes, é bom, é muito bom, porque aprendemos imensas coisas sobre aquilo que é trabalhar com mulheres e elas estão nos sempre a dizer, "tens que ser focado" e isso tem-me ajudado imenso no meu trabalho. Com os restantes colegas do ACM, a ideia que eu tenho e espero que seja essa ideia que eles têm é que sempre que falamos e comunicamos alguma coisa, sobretudo sobre as comunidades ciganas, as pessoas ficam com aquela vontade de continuar a trabalhar na integração das pessoas ciganas e não só. Eu acho que essa ideia que passa muito aqui no ACM é que temos de ser capacitados, temos de capacitar estas pessoas e que, no fundo, temos de dar o nosso máximo para ajudar estas pessoas. Nós temos inúmeros exemplos, inúmeros eventos que nós fazemos por ano que têm dado ótimos resultados e espero que a minha relação com os meus colegas continue a ser espetacular.

Trabalhar no ACM foi a minha primeira experiência de trabalho formal, porque eu ajudava os meus pais nas feiras ao fim-de-semana, tinha a minha própria banca. Mas em termos formais, foi a minha primeira experiência de trabalho e acarretar com tantas responsabilidades logo de início confesso que não foi fácil para mim, até porque vinha de um meio muito pouco formal. Nós sabemos que as comunidades ciganas logo desde o início temos esta questão da autonomia e da responsabilidade para com a família enorme, mas com o leque alargado de pessoas não é tão fácil e, sobretudo preencher boletins de itinerários, picar o ponto e todas essas coisas, que no fundo tive que ir adquirindo. E com a ajuda das minhas colegas claro que fui conseguindo. E claro que agora é mais fácil, apesar que a formalidade ainda hoje é um obstáculo para mim, confesso.   

 

ObCig: O que valoriza mais no trabalho assalariado?

FA: Aquilo que eu valorizo mais no trabalho assalariado é de facto a estabilidade financeira que nós temos na nossa vida, na nossa casa. Eu, dando o meu exemplo, casei recentemente, tenho um filho com um mês e meio, e ter aquele dinheiro fixo ao final do mês para mim é uma garantia que nada vai lá faltar em casa. E acho que é isso que mais se valoriza no trabalho assalariado, ao contrário das feiras que têm diminuído o volume de feiras e os preços mantém-se sempre por m2 e nós não sabemos se hoje vendemos, amanhã não vendemos. Há muitos fatores que podem fazer com que não se venda e há muitos fatores que podem fazer com que se venda. No trabalho assalariado temos mais confiança e sabemos que podemos contar com aquele dinheirinho ao final do mês.  

 

ObCig: O que acha que pode e deve ser feito para potenciar a integração da população cigana neste tipo de trabalho? No que diz respeito à sociedade dita maioritária? No que diz respeito à população cigana?; No que diz respeito às políticas públicas?

FA: Em relação à pergunta sobre o que pode e deve ser feito para integrar as pessoas ciganas no mercado formal, eu acho que temos de ter em conta três fatores: aquilo que a sociedade maioritária pensa da sociedade cigana e o que pode ser feito, aquilo que a própria comunidade cigana pensa do mercado de trabalho e quais são as políticas públicas que existem para que a comunidade cigana se envolva no mercado formal. Então, em relação à sociedade maioritária aquilo que se pode fazer, na minha opinião, eu julgo que existe um grande desconhecimento daquilo que é a comunidade cigana e daquilo que é a história e cultura cigana em Portugal. Ou seja, as pessoas que não são ciganas não sabem o que é que é verdadeiramente um cigano e aquilo que é verdadeiramente importante para um cigano. Depois a sociedade cigana, digamos assim, a comunidade cigana vê no mercado assalariado um projeto a longo prazo e para se chegar à forma assalariada de receber o dinheiro é preciso estudar. E nós sabemos que a comunidade cigana tem objetivos a muito curto prazo, derivado, podemos estar a falar aqui em muitas coisas, aos contextos históricos ou o que quer que seja, mas a realidade é esta, e portanto para modificarmos tanto o comportamento tanto da sociedade maioritária no desconhecimento da cultura cigana, mas também capacitarmos os ciganos e ajudar esta comunidade, apesar de ter coisas boas, de que ter um trabalho assalariado pode trazer estabilidade a estas vidas, eu acho que temos de investir em políticas públicas que visem colmatar as deficiências que existem na sociedade maioritária em relação à comunidade cigana, mas também na comunidade cigana em relação à sociedade maioritária. Portanto, poderia dar aqui imensos exemplos, que nós aqui no Alto Comissariado para as Migrações temos realizado neste âmbito. Aqui, no âmbito da Educação, eu acho importante referir o Opré Chavalé, que agora é o OPRE - Programa Operacional para a Educação - e este programa que é uma política pública do Alto Comissariado para as Migrações tem apoiado jovens ciganos que estão no ensino superior. Aquilo que temos feito é conceder uma bolsa de estudos que dá sobretudo para pagar as propinas, alguns transporte e materiais escolares, mas conseguimos com que estes jovens possam estar na faculdade e depois possam também integrar-se no mercado de trabalho, não no mercado de trabalho em postos sem poder, digamos assim, mas em postos em que eles possam também ser uma mais-valia e um exemplo para a comunidade cigana. E tendo em consideração este programa, julgo que podemos dizer que estes jovens podem ser líderes, digamos assim, da comunidade cigana. E também para mudar a visão que a sociedade maioritária tem dos ciganos. Depois também temos no âmbito da nossa Eestratégia o Fundo de Apoio à Estratégia Nacional, o Programa de Apoio ao Associativismo Cigano. Estes dois programas têm como objetivo apoiar as associações ciganas e não ciganas no trabalho com as comunidades ciganas. E isso também é importante para que cada vez mais as associações ciganas e não ciganas possam divulgar aquilo que é a história e a cultura cigana através destas políticas públicas que eu acho que são importante. Depois também existe o trabalho do ObCig que eu acho que é super importante na realização de campanhas de sensibilização para mudar mentalidades em relação àquilo que é, no fundo o sermos seres humanos. E aquilo que eu gostava de terminar... E se, pensarmos bem, são mais as coisas que aproximam a comunidade cigana da sociedade maioritária do que aquela que nos afastam. Aquilo que aconteceu foi um período muito atrás na história que fez com que a comunidade cigana e a sociedade maioritária tivessem imensas divergências que eu acredito que, com estas pessoas ciganas que se estão a formar, com o Alto Comissariado para as Migrações e também com o entendimento que tem existido entre os vários Ministérios, consigamos diminuir o gap entre ciganos e não ciganos.    

 

ObCig: Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

FA: Existe um provérbio cigano que eu acho que é muito verdadeiro, que é: "A mais bela fogueira começa com os mais pequenos ramos". Eu costumo dizer sempre isto quando falo em público porque o facto de estarmos aqui a fazer estas entrevistas, de existir as associações ciganas, de existir o ACM, de existir o ObCig, pode ser esta primeira fogueira que eu acredito que depois vai ser maior e que vai ajudar ciganos e não ciganos a encontrar-se. 


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