Vozes Ciganas na Mediação Intercultural (Parte II), Entrevistas

SÓNIA MATOS
Entrevista realizada em novembro de 2018, Seixal
Entrevista realizada em novembro de 2018, Seixal
Observatório das Comunidades Ciganas (ObCig): Como surgiu a oportunidade de ser mediador/a intercultural?
Sónia Matos (SM): Através do RSI, tentei conseguir arranjar oportunidade para tentar ser alguém, portanto, naquela altura eu tinha 22 anos e eu sabia que queria ser mais do que doméstica, dona de casa. Só isso não chegava, eu queria ter uma profissão, queria ser alguém e portanto, vi nisto uma oportunidade. E a minha assistente social informou-me do início de um curso e fui a uma entrevista, da qual fiquei seleccionada. No decorrer desse curso, nós desenvolvemos o curso em parceria com 12 mulheres africanas e depois a meio do curso fomos divididas, porque elas seguiram o curso de geriatria e cuidados e nós seguimos o curso para mediadoras. Isto foi tudo uma experiência. Eles tiveram até meio do curso a analisar se nós tínhamos capacidades para ser mediadoras e conseguimos as cinco provar que sim e claro que nessa altura tivemos a sorte de ter na coordenação do projeto a Dra Fernanda Pedro, que era uma pessoa muito ativa, muito católica também, e que nos levou logo a seminários, a encontros, fomos para Roma com ela, portanto, foi quem nos deu empoderamento, digamos, e conhecimento do mundo e da sociedade em que vivemos. E depois um formador do curso identificou logo no curso que nós tínhamos todas as capacidades para formar uma associação. Uma associação de mulheres ciganas, nós não sabíamos muito bem o que isso era, nem para que servia e fomos assim um pouco atiradas assim ali para o meio da tourada, porque foi assim que nos sentimos no início, porque era tudo muito novo, não havia mulheres ciganas a trabalhar e depois uma mulher viúva e cinco solteiras… é complicado. Portanto foi um percurso engraçado, mas conseguimos, chegámos aqui.
ObCig: O que significa para si ser mediador/a intercultural?
SM: Uma mediadora é um caminho, é um percurso. E é uma aprendizagem todos os dias, e ao longo deste meu percurso fui desenvolvendo várias áreas em meu redor. Ser mediadora cultural é uma pessoa que tem de ser imparcial, que tem de conseguir ouvir um lado e ouvir o outro e tentar fazer a conciliação entre dois pensamentos e que depois esses pensamentos entrem num conjunto e possam partilhar as ideias e chegar a um consenso. Não é um percurso fácil, é muito difícil porque quem fica no meio, tem o trabalho mais complicado, mas é um trabalho que se consegue quando se acredita nele.
ObCig: Na sua perspectiva, qual é o papel do/a mediador/a na sociedade?
SM: A mediadora é alguém que pode trabalhar em várias vertentes, pode trabalhar na área da educação que é essencial e aí já está provado, está mais que provado que um mediador nas escolas é essencial para o sucesso da escolaridade nos meninos de etnia cigana. Além das escolas vejo uma mediadora nos centros comunitários, nos serviços sociais, nos hospitais. Portanto, a mediação seria algo muito importante que os serviços deveriam ver como atendimento para a comunidade cigana. Porque o que eu sinto é que há uma dificuldade muito grande de comunicação entre as duas culturas.
ObCig: Como acha que as pessoas olham para o/a mediador/a?
SM: Um mediador, quando eu digo que sou mediadora, as pessoas perguntam-me o que é isso. “É mediador imobiliário?” Tanto é que é uma profissão um bocadinho… que ninguém identifica. Está muito mais identificada como animadora cultural. E está muito ligado a essa vertente. Um animador tem muito aquele lado da vertência de um mediador, mas depois o mediador da comunidade cigana tem uma especificidade que é a cultura cigana. E aí acho que é essencial para trabalhar com a comunidade cigana.
ObCig: Lembra-se de alguma situação em particular que o/a tenha levado a reflectir mais sobre o papel de mediador/a?
SM: Ao longo de 18 anos já dá para fazer uma reflexão no meu local de trabalho onde sou efetiva, neste momento pedi dois anos de licença sem vencimento porque decidi agarrar a minha associação e trabalhar nos projetos em que eu acredito. Mas como disse, há 18 anos que trabalho e estou contratada como auxiliar da ação educativa. Além de fazer esse trabalho, sou professora de dança flamenca que foi outra vertente que desenvolvi ao longo dos anos, a dar aulas de dança sem ser para a comunidade cigana, tudo mulheres adultas, e mais tarde também, formadora. Nestas quatro vertentes e nestes quatro papéis que são muitos distintos uns dos outros a mediação é aquela que mais me toca, aquela que mais me chama, embora seja aquela que seja a mais difícil. Mas é aquela que me dá mais prazer fazer. Mas consigo perceber aquilo que me quer dizer, se houve momentos em que me deu vontade de desistir, sim, deu-me vontade de fazer outras coisas sem ser a mediação, porque a mediação é para alguém que tem muita coragem e que gosta muito e que acredita muito naquilo que faz. Eu posso contar uma situação que se passou comigo, estava a trabalhar há cerca de um ano e no meu primeiro trabalho realizava animação nas escolas, uma parceria com o ICE – Instituto das Comunidades Educativas -, isto em 2000, que era parceiro aqui do “Centro Comunitário várias culturas uma só vida” onde eu trabalho e nós desenvolvíamos animação nas escolas. Nos primeiros tempos eu ía animar os recreios e numa das vezes em que eu tive de ir beber água lá dentro, eu ouvi as auxiliares a comentarem que com esta animadora a vir lá para os recreios os miúdos da comunidade cigana deixaram de faltar e elas tinham que levar com elas todas. Houve alturas em que foi complicado para mim aceitar e ver o quanto a comunidade cigana é discriminada e continua a ser discriminada. Mas é um trabalho que me dá prazer fazer. E hoje consigo ver a diferença, consigo apreciar o quanto houve de mudança de mentalidade das pessoas, da sociedade maioritária, da comunidade cigana a nível da educação, a nível escolar, a nível de comportamentos, e isso são comportamentos. Uma sociedade leva muitos anos para mudar, esses comportamentos já estão enraizados dentro de nós. E portanto é muito difícil. Hoje posso falar por experiência que vivemos na mesma sociedade, temos os mesmos costumes, mas a comunidade cigana está 20 anos, relativamente aos costumes, em atraso ao resto da sociedade maioritária. Porque os nossos costumes são os portugueses, a gente não tem outra cultura, é este o país onde nascemos, portanto, temos é as raízes mais aprofundadas, dentro de nós ainda temos e conseguimos preservar isso, devido ao facto, claro, de continuarmos casamentos comuns e assim se mantem uma cultura com mais de 500 anos.
ObCig: Se pudesse, o que mudaria no papel do/a mediador/a?
SM: Reconhecimento da parte do governo, reconhecimento por parte das instituições, reconhecimento por parte do Ministério da Educação, principalmente é aí a grande vertente, e a grande batalha e se possível que o mediador tivesse mais apoio porque é uma profissão muito desgastante e que necessitávamos de mais apoio por parte… não sei… das instituições, do governo. Deveríamos ter apoio a nível de formação para podermos ganhar força. Encontros entre os mediadores, reflexão sobre o trabalho que se tem vindo a fazer com a mediação em Portugal. Acho que o reconhecimento, acho que era isso aquilo que eu mudaria no mediador.
ObCig: O que acha que é importante mudar na sociedade para que esta se transforme numa sociedade intercultural?
SM: Em primeiro lugar que não olhássemos para o outro como se tivéssemos de integrá-lo em algo, mas sim incluí-lo e respeitá-lo na sua diferença e quando digo isto, digo para a comunidade cigana, digo para a mulher, digo para as minorias, digo para aqueles que são diferentes, portanto quando nós conseguirmos olhar para o outro enquanto pessoa, nós conseguimos incluí-lo na sociedade. Eu acho que é errado que aquilo que se tem vindo a fazer, trabalhar a integração da comunidade cigana, mas a comunidade cigana não quer ser integrada, quer ser respeitada, que é isso que faz falta, é respeitarmo-nos uns aos outros, e no dia que conseguirmos fazer isso, vamos ter uma sociedade mais justa, sem sombra de dúvidas para toda a gente.
ObCig: Tendo em atenção a sua história de vida e experiência de mediação, que mensagem gostaria de transmitir à sociedade?
SM: Sim é possível, é possível vivermos todos na mesma sociedade, respeitarmo-nos uns aos outros e sim é possível convivermos todos juntos sem nos magoarmos uns aos outros. E respeitando-nos na nossa diferença. Posso falar por experiência própria, já sou casada com um não cigano e uma das coisas que ultimamente me deixou muito afetada e muito magoada, foi o fato de ver várias pessoas publicar no facebook, onde pedem na inscrição da criança para definir a sua etnia, e diz lá descendência cigana, descendência africana, e eu não sei como posso definir os meus filhos, o termo não está lá. Como é que eu defino os meus filhos? São metade metade, são meio termo? Vamos lá meter meio termo? Isso é uma das coisas que eu gostava que ficasse aqui vincada, que é que contínua a magoar-me ao longo de dezoito anos de trabalho, de reflexão, de trabalho de formação principalmente a técnicos e continuar sempre a ser convidada para seminários onde se fala da imigração, dos imigrantes. E eu não tenho outra bandeira, não reconheço outro hino e recuso que me retirem a minha identidade.