Vozes Ciganas na Mediação Intercultural (Parte II), Entrevistas

ALZINDA CARMELO
Entrevista realizada em novembro de 2018, Seixal
Entrevista realizada em novembro de 2018, Seixal
Observatório das Comunidades Ciganas (ObCig): Como surgiu a oportunidade de ser mediador/a intercultural?
Alzinda Carmelo (AC): Ser mediadora intercultural surgiu há 19 anos atrás. Os meus pais beneficiavam do RSI e eu fui chamada para uma entrevista com a assistente social e ela perguntou-me, teve o cuidado de me perguntar o que é que eu gostava de fazer. E eu respondi-lhe porque, eu não tinha sonhos, tinha saído da escola novinha, o meu percurso foi sair da escola com a 4ªclasse e não tinha sonhos para trabalhar, porque não era essa a minha realidade, mas eu disse-lhe que gostava de tirar um curso para aprender mais, nunca pensando na mediação, porque eu não sabia tão pouco o que era ser mediadora, mas queria aprender mais, queria dar um salto porque eu sempre adorei a escola e, como saí muito novinha da escola, tinha desejos em continuar os meus estudos, então fui a uma entrevista de um curso. Fiz um teste e fui seleccionada.
ObCig: O que significa para si ser mediador/a intercultural?
AC: Eu vou ser muito sincera, eu quando comecei a fazer o curso de mediadora sociocultural, eu própria não sabia o que era ser mediadora. Porque ao fazer o curso, terminei o curso, fiz um estágio. A mediação é terreno, a mediação faz-se todos os dias. Para mim, eu faço a minha mediação de uma forma que, eu não gosto de gabinete, eu gosto de terreno, eu gosto de sair aos bairros, eu gosto de falar com as pessoas, eu gosto de interagir com as pessoas porque acho que só assim é que se consegue criar ligação. E o facto de ser cigana, porque logo aí há uma grande abertura com a comunidade cigana, principalmente com as mulheres pelo facto de eu ser cigana. Mas o ser mediador… Qual é o passo para ser boa mediadora? Os passos para se ser mediadora para mim, a minha forma de ver a mediação é interagir, ir aos bairros, como eu vos disse, é o terreno, é mostrar às pessoas que há ali uma pessoa que pode facilitar, facilitar os dois lados, porque a mediação é a ponte entre a comunidade maioritária e a comunidade cigana, porque nós vivemos no mesmo país, mas acho que vivemos de costas voltadas, queiramos ou não, vivemos. A comunidade cigana porque é ainda uma comunidade muito fechada, porque temos a nossa cultura e a comunidade maioritária porque não nos consegue aceitar tal como somos, é evidente que a comunidade cigana tem que ter algumas alterações, comportamentos e principalmente na educação, tem de deixar os filhos estudar, porque sem educação não conseguimos, mas eu acho que é aqui que entra a mediação, nestas costas voltadas, nestas diferenças, que existe a mediação, é onde a mediação entra… Eu muitas vezes quando dou formação e falo do que é ser mediadora e qual é o meu papel nestes projetos é isto, é facilitar a comunicação, o diálogo intercultural é fundamental. E eu tenho isso presente diariamente no meu trabalho, porque a formadora tem uma linguagem super acessível, mas eu vejo as miúdas a perderem-se, e ela está a falar português, estamos a falar a mesma língua, mas perdem-se. E eu digo, mas o que é que se está a passar? Porque é que vocês estão… “ eu não estou a perceber o que é que ela está a dizer”. E eu aí falo exatamente como estou a falar, língua portuguesa, porque nós não temos outra língua, temos a nossa língua, mas também acabou-se por perder e não a falamos, mas a forma como nós expressamos, a forma como nós falamos. Portanto, a comunidade maioritária… a comunidade cigana diz que a comunidade maioritária tem um sotaque e a comunidade cigana também tem um sotaque, então tem que haver aqui um equilíbrio para que neste sotaque não falte a comunicação, porque eu acho que é um ponto fundamental na mediação intercultural. E eu tenho feito muito muito muita mediação intercultural.
ObCig: Na sua perspectiva, qual é o papel do/a mediador/a na sociedade?
AC: Na minha perspetiva o papel da mediadora na sociedade é uma ferramenta facilitadora para a integração das comunidades ciganas… Eu acho que todos os projetos que têm mediadores a trabalhar com comunidades ciganas estão a ter uns bons resultados, os resultados são completamente diferentes, então há que apostar nessas mediações porque faz toda a diferença. Porque a experiência que eu tenho e os mediadores que eu conheço, há muitos mediadores desempregados. Não é facilitador, facilitador é uma coisa, mediador é outra. “Mas agora facilitador e mediador já faz o mesmo”, mas não, porque eu para ser mediadora tive de ter uma formação, eu tive um estágio e eu tenho experiência de 18 anos. Eu há 18 anos não conseguia fazer a mediação que consigo fazer hoje, porque a minha idade também era outra, a minha experiência também era outra e eu hoje sinto-me com capacidade para fazer mediação em qualquer sítio porque acho que tenho vindo a aprender, porque a vida é uma aprendizagem e o fato da mediação é o mesmo, vamos aprendendo consoante os anos. Mas para mim eu acho que a mediação é uma ferramenta que as pessoas podem utilizar para minimizar os problemas que têm com a comunidade cigana.
ObCig: Como acha que as pessoas olham para o/a mediador/a?
AC: Eu vou-me focar um bocadinho nas duas comunidades. A comunidade cigana hoje em dia foca-se para o mediador de uma forma diferente porque há muita comunidade cigana que não sabe o que é um mediador, para que serve o mediador, o que é que está a trabalhar o mediador, quais são as funções do mediador, mas ultimamente e é esse o trabalho que a minha associação, a AMUCIP, tem vindo a desenvolver, temos falado muito sobre o que é o mediador, o que é o facilitador, as pessoas já estão a ter uma perspetiva diferente do que é a mediação. A comunidade maioritária acho que ainda não conseguiu ver o que é o mediador porque não temos carreira, não estamos a receber o valor justo para um mediador. Porque o mediador é um apaga fogos, o trabalho da mediação é um trabalho ingrato. O fato de entrar num bairro… eu sou cigana, mas nem todos os ciganos me conhecem, nem todos os ciganos têm a mesma forma de ver as coisas, portanto quando eu vou fazer este tipo de trabalho é evidente que eu também vou com o coração nas mãos, porque eu não sei como é que eu vou ser recebida. Portanto, acho que é um trabalho que deveria ter mais mérito que àquele que ele tem, e ser mais bem remunerado porque não o é.
ObCig: Lembra-se de alguma situação em particular que o/a tenha levado a reflectir mais sobre o papel de mediador/a?
AC: Eu como disse há pouco, eu todos os dias reflito um bocadinho sobre o papel da mediação, porque é a minha constante, mas muitas vezes é evidente que eu tenho tido… faço mediação em vários sítios, em vários bairros, escolas, centro qualifica, neste próprio espaço, estou-me a focar neste cinco anos de trabalho que tenho vindo a desenvolver que por vezes não é fácil, mesmo eu sendo cigana a trabalhar com a comunidade cigana, tenho-me visto em situações que são muito difíceis para mim, muito difíceis, muitas vezes saio dos bairros a chorar e a pensar como é que eu posso chegar àquela família sem chocar… portanto eu faço a mediação todos os dias de maneira diferente, eu sei qual é o meu foco, eu sei qual é a minha perspetiva, eu sei o que é que quero atingir, mas eu faço a minha mediação de uma forma consoante aquilo que me aparece. Como eu digo, nem todas as pessoas são iguais, nem todas as famílias são iguais, portanto se eu for a um hospital e eu fizer mediação eu aí tenho de ter uma postura, se for a um bairro social terei de ter outra, se estiver neste espaço terei de ter outra. Portanto, um mediador, do meu ponto de vista, é um camaleão.
ObCig: Se pudesse, o que mudaria no papel do/a mediador/a?
AC: Eu não mudaria nada no papel de mediadora, agora depende de cada mediador. Eu na minha mediação não mudava nada, porque da forma como eu faço a mediação, não sou a melhor, não é isso que eu quero dizer, mas aquilo que eu aprendi na minha formação eu pus em prática e depois fui-me aperfeiçoando cada vez mais, cada vez mais, cada projecto vou-me aperfeiçoando, primeiro empoderar. Num projeto em que eu trabalhei tinha de arranjar 12 jovens mulheres ciganas, dos 18 aos 30, para participar num projeto no qual elas não íam beneficiar de nada, quando digo beneficiar digo algo remunerado, não, o que é que eu tinha para oferecer a estas jovens? Formações, saídas e auto-estima. E era difícil. E eu quando comecei a fazer esta mediação, se eu tinha as coisas marcadas para começar às 9h eu saía da minha casa às 6h30 da manhã, porquê? Porque eu ía fazer a deslocação destas mulheres, porquê? Porque era o princípio, eu tinha que as ganhar, ganhar quem? Os maridos e as famílias. Muitas vezes eu subia as escadas e ía ajudá-las a vestir os miúdos, muitas vezes eu ajudava-as a preparar o pequeno almoço para dar aos miúdos porque havia essa necessidade, porque a mulher cigana é mãe, é dona de casa, e para se envolver neste tipo de coisas tem que haver ali um apoio e eu hoje noto uma diferença grande, eu já não vou buscar ninguém, eu hoje já não ajudo a vestir ninguém. Os próprios homens começaram a participar. Mas há cinco anos atrás não. Tinha de ser a mediadora, portanto em vez de fazer 8 horas eu fazia 10, 11, 12, 14 e não era paga para isso. Portanto a mediação é algo que está entranhado em mim. É aquilo que eu gosto, é aquilo que eu sei fazer porque nunca trabalhei noutra coisa, sempre trabalhei como mediadora, para além de ter tirado formações que me dá acesso a outros tipos de trabalho, mas realmente a mediação é algo que… eu nasci para ser mediadora.
ObCig: O que acha que é importante mudar na sociedade para que esta se transforme numa sociedade intercultural?
AC: Como eu disse, não é só a comunidade maioritária, a comunidade cigana tem que… nós ao sermos um povo tão fechado, temos também de contribuir para isso. Mas quando nos começarem a ver não num todo, mas individual, cada pessoa é um mundo e não somos todos iguais. Quando a comunidade maioritária começar a ver a comunidade cigana como individual e não nos porem todos no mesmo saco, quando valorizarem a mediação, da forma que ela merece ser valorizada, quando os mediadores tiverem uma carreira, tiverem um ordenado adequado, acho que aí a comunidade maioritária e a sociedade maioritária, poderemos dizer que está a ter um papel justo, porque neste momento eu não acho que é justo, acho que é injusto.
ObCig: Tendo em atenção a sua história de vida e experiência de mediação, que mensagem gostaria de transmitir à sociedade?
AC: A mensagem que eu gostaria é que nos conheçam antes de nos odiarem, que não somos todos iguais, cada pessoa é um mundo, que estamos numa altura em que a comunidade cigana quer dar o passo, porquê? Nós sempre sobrevivemos por nós próprios. A comunidade cigana nunca precisou de trabalhar por conta de outrem, sempre trabalhámos, sempre trabalhámos, sempre nos sustentámos por conta própria, portanto, logo esse fator faz com que nós tenhamos algumas dificuldades nos horários, em agendar coisas para amanhã, eu falo por mim, porque eu já passei por isso. Pensarmos no amanhã, nós vivemos muito hoje, hoje tenho, hoje estou cá, amanhã só deus sabe. Esta é a filosofia da comunidade cigana. Mas quando a comunidade maioritária começar a ver o que cada individuo, é individuo, não como comunidade. Acho que estamos na altura em que a comunidade cigana precisa de trabalhar, porque neste momento não há como sustentar, estão agarrados a uma prestação protocolada que não lhe dá hipóteses nenhumas, só existe aquilo, não existe mais nada, não existe muito mais do que aquilo, quando há verdade, quando há disponibilidade de mostrar às pessoas que independentemente do seu percurso e da sua escolaridade, toda a gente, todos nós temos sonhos e há que apostar nos sonhos das pessoas.
ObCig: Quer acrescentar mais alguma coisa a esta entrevista?
AC: Espero que com estes vídeos consigamos sensibilizar as pessoas, as entidades, o nosso governo, que os mediadores são fundamentais para aquilo que se pretende fazer com a comunidade cigana. Que olhem para este vídeo e que pensem que às vezes uma pequena alteração faz toda a diferença e que olhem para este vídeo com algum carinho e que apoiem mais os mediadores, que dêm trabalho aos mediadores nas escolas, nos hospitais, nos centros de saúde, nas seguranças sociais, há tantos problemas, e o mediador pode minimizá-los, não acabar com eles, mas minimiza-os. Acho que não tenho mais nada para dizer.